O ESPETÁCULO DO PROCESSO PENAL E A LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

Vivemos em uma época em que só se diz que houve justiça se houver uma condenação. Pronto, esse texto poderia acabar aqui e já estaria dado parte do recado a que ele se presta. Mas, como meu intuito aqui não é dar recado, e sim levar a uma reflexão, ainda há muito o que se falar.

            Imagine a situação, você chega em sua casa após um longo dia de trabalho, chegam você sua mulher e seu filho de 17 anos. Vocês ligam a TV no jornal local, e leem a seguinte legenda “homem drogado, estupra e mata criança de 5 anos”. Nesse cenário em que três pessoas estão reunidas, sou capaz de apostar que ao menos uma delas, vai dizer:

“tem que morrer”;

 “tem que sofrer o resto da vida”

 “tem que ficar preso pra sempre”, ou algo do tipo.

            Ali naquele momento de paixões e ânimos exaltados, acontece um fenômeno de animalização do suposto autor do crime (fenômeno amplamente discutido na psicologia), e em meio a isso, muitos dos espectadores dessa notícia, se pudessem ajudariam a linchar o acusado.

            Mas percebam que eu disse “acusado”, “suposto autor”. Aqui, nesse cenário hipotético eu não sei se aquele individuo exposto na TV realmente cometeu esse crime que lhe é imputado. Você também não sabe, a única informação que você tem foi tirada de uma televisão, de um jornal que geralmente é sensacionalista e tendencioso com essas notícias. Porém não faz diferença, ninguém pensa que aquele homem exposto, aviltado, humilhado pode ser inocente, e quem pensa prefere ignorar.

            Não raro as consequências disso são gravíssimas. Vamos citar alguns casos famosos. Em 2014 uma mulher foi linchada e Guarujá-SP simplesmente porque alguém publicou uma noticia que ela matava crianças pra praticar Magia-Negra. Só que não né, a mulher era inocente, trabalhava, tinha pessoas que a amavam, assim como sua mãe por exemplo.

            2016, Jataí, interior de Goiás, homem é morto a golpes de facão dentro de um hospital, linchado por populares, após ser acusado de ser autor de um Estupro. Posteriormente descobriu-se que o homem era inocente, esse também podia ser seu filho, ou até mesmo você.

            Não podemos esquecer da escola que foi depredada, após a circulação de uma noticia falsa de que crianças eram molestadas ali.

            Enfim exemplos não faltam, na era da informação ao alcance de um clique, dê uma “googada” e terá noticias assim pra ler uma manhã inteira. Porém, ironicamente em casos assim, pelo menos a imagem daquele que foi acusado injustamente é preservada, visto que após sua morte, geralmente a verdade (que ele era inocente e vitima de uma injustiça fatal) vem à tona.

            No caso hipotético da notícia que você viu no jornal no fim do seu dia de trabalho, caso o suposto autor tenha a sorte de não ser linchado, e posteriormente seja julgado e absolvido. As vozes novamente se levantarão pra dizer.

“Por isso que esse país é assim”

“Que absurdo, um cara desses não passar o resto da vida na cadeia”

“Aqui não existe justiça”

            Essa última é a mais interessante. Senão vejamos, esse indivíduo enfrentou o que de pior um cidadão poderia passar na vida. A sociedade inteira lhe apontado o dedo, querendo que ele morresse, até mesmo seus familiares, sentindo nojo dele. O Estado com todo o seu poder querendo lhe imputar um crime.

            Daí um Juiz togado, que compulsou todos aqueles autos, ouviu o MP, ouviu o Advogado do Réu, ouviu testemunhas, Delegado, peritos e etc. Se convenceu de que tudo aquilo foi um engano, e que na verdade aquele homem era inocente. Depois disso tudo, esse pobre coitado ainda terá que enfrentar julgamentos morais por anos, sua vida correrá riscos. Aquele jornaleco sensacionalista não vai mostra-lo de novo e ficar repetindo com a mesma ênfase que ele era inocente. E depois disso tudo, a maioria dos que souber da noticia de que o réu foi inocentado, que sequer sabem de fato o que é um processo penal, vão se julgar mais qualificado que o juiz e dizer que ele deveria ter sido condenado.

            Pronto, uma vida foi destruída pra sempre!

Diante de incontáveis casos como esse, surgiu uma luz no fim do túnel, A Lei de Abuso de Autoridade, que em seu Art. 13 procurou mitigar situações como essa. No Brasil, como sendo o único país em que se ouve o termo, “essa lei não pegou” ainda precisamos ver como vai funcionar na prática.

Mas é fato que apesar da grande campanha de estelionato intelectual, capitaneada principalmente pela Magistratura e pelo MP, divulgando aos quatro ventos mentiras sobre a referida Lei, ela foi aprovada, com muitos vetos, mas foi aprovada.

            Extremamente falaciosos foram os discursos daqueles sobre a referida Lei. Alegando coisas como, “essa lei é uma afronta ao combate a corrupção”, “essa lei é para amedrontar Juízes e Promotores”, colocando-se esses como os Paladinos da Justiça, livres do cometimento de qualquer erro, e como se a possibilidade de eles serem responsabilizados pelos seus eventuais erros fosse um absurdo, afinal, o que é um “abususinho” de autoridade de vez em quando.

            Dentre tantos abusos essa espetacularização do Processo Penal era algo que carecia de um basta. Chegamos ao ponto em que Procuradores de Justiça marcavam coletivas de imprensa para dizer que iam oferecer a denúncia. Vejam bem! A denúncia sequer havia sido oferecida, para só então o processo ser ou não aceito pelo Judiciário, mas ainda assim a imagem daquele eventual réu já era exposta em rede nacional. E isso com certeza vai bem além daquilo que pregam os mandamentos da Administração pública.

            O processo Penal, como sendo uma das formas de exteriorização do Poder da Administração pública deve ser público, até mesmo porque como tal deve obedecer aos princípios basilares desta, dentre eles o da publicidade. Mas vejam, existe um abismo separando o público do publicizado.

De tudo apesar do que se queria construir como Dogma diante da atual conjuntura social, o MP e a Magistratura são, também, órgãos estatais lato sensu, e, portanto suscetíveis de erros e excessos, logo devem ser regidos pelo sistema de freios e contrapesos, de modo que a Lei de Abuso de Autoridade não poderia vir em melhor momento.

 Entre tantos outros pontos relevantes que tratou essa lei, e que serão abordados aqui em artigos futuros, um grande avanço foi sem dúvida o Art. 13. Pois é inadmissível que pessoas continuem tendo suas vidas destruídas, ou até mesmo morrendo, pra algum tempo depois se descobrir que ela era inocente, em prol de algum promotor, juiz ou delegado querendo aparecer um pouco na TV.

Dr. Kaíque Carlos de Oliveira. OAB/GO 58.157. Advogado e Professor, membro da Comissão de Direito Penal da OAB/GO. Pós-Graduando em Ciências Criminais.

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