A greve dos Policias Militares no Ceará já completa 10 dias na data em que está sendo escrito este artigo, desde o seu inicio toda a mídia brasileira tem acompanhado de perto cada detalhe desse filme de terror, mas em meio essa saraivada de notícias uma chamou muita a atenção e não para de “dar o que falar”, que foi o episódio protagonizado pelo Senador Cid Gomes do PDT do Ceará. Os disparos efetuados contra o Senador têm dividido as opiniões deste então, aqui iremos lançar um olhar crítico sobre o episódio para sanar uma das muitas celeumas em volta do assunto.
Afinal o policial que atirou agiu ou não em Legitima Defesa?
É salutar que você, independentemente de ser leigo ou jurista, se quiser entender, de fato, todas as nuances do caso, esteja disposto a analisar a questão sob o ponto de vista técnico/jurídico aceitando os fatos mesmo que eles sejam contrários as suas ideologias.
Pronto, superadas as paixões políticas, vamos aos fatos.
A primeira coisa importante a se saber é que os policiais militares amotinados são criminosos, e isso não sou eu quem estou dizendo, é a Lei em sentido amplo. Explico. O Art. 42 e o 142, § 3º, IV são claros, expressos e diretos ao estabelecer que ao militar é proibido o Direito de Greve. Na esfera infraconstitucional o Código Penal Militar prevê várias condutas que estão sendo cotidianamente praticadas pelos Militares amotinados nos Arts. 149, 150, 151 e 152. Não vou transcreve-los ipsis literis mas em resumo os tipos penais citados tem como elementares o Motim, a desobediência, o uso de armamento militar para fins de amotinação, a ocupação de quarteis, e etc.
E nem vou entrar nos detalhes da confusão, como os danos ao patrimônio público, o uso da força para obrigarem comerciantes a fecharem seus estabelecimentos, o incrível número de 170 homicídios em 10 dias com o mesmo modus operandi, ou qualquer outra atrocidade que vem sendo noticiada cotidianamente pela grande mídia. Em resumo isso significa dizer, parafraseando a mim mesmo, que os policiais amotinados são criminosos, ponto.
Agora que você já sabe que os policiais (se é que assim podem ser chamados) estão cometendo um crime. Faça-se o seguinte questionamento: “Imagine que um Senador, revoltado com a situação caótica criada pelo tráfico em determinada comunidade, resolva pegar um Trator e “passar por cima” da casa onde funciona a gerencia da “boca”. Nesse interim um dos traficantes no afã de defender sua empreitada criminosa saca uma arma e manda bala no peito do motorista do trator.” Nessa situação hipotética haveria que se falar em legitima defesa?
Não se precipite em responder agora, vamos primeiro entender segundo conceitos técnicos o que exatamente é a legitima defesa e quais os limites dela, mas guarde o exemplo na memória, voltaremos a usá-lo à frente.
O ordenamento Jurídico Penal Brasileiro adota a teoria analítica tripartida do crime. De modo que para determinada conduta ser considerada crime, devem concorrer a tipicidade (formal e material) ilicitude e culpabilidade. A tipicidade diz respeito à previsão legal anterior a conduta praticada, exemplo, Art. 121 do CP “matar alguém”. Assim sempre que o agente dolosa ou culposamente mata outra pessoa o fato foi típico, porém isso ainda não quer dizer que ali houve um crime. Pois superada a tipicidade é preciso observar se o agente não agiu amparado por uma excludente de ilicitude.
Dentre essas excludentes está a legitima defesa. Que parti do pressuposto que o agente matou para repelir injusta agressão atual ou iminente que ele não tenha provocado por uma conduta anterior. Perceba que a agressão deve ser injusta, não deveria estar acontecendo, além do que é preciso que se analise também a proporcionalidade entre a agressão e a defesa oferecida pelo agente.
Para esclarecer esse ponto tomemos o Exemplo do marido no auge dos seus 28 anos praticante de musculação, medindo 1,90 m com 100 kg que começa a ser agredido com tapas por sua esposa, essa com 1,60 m e 55 kg, na ocasião o marido saca um revolver e dispara duas vezes contra o peito da esposa. Surgem as perguntas.
O marido estava sofrendo uma agressão? Obviamente que sim
Era atual ou iminente? Com certeza
Houve proporcionalidade entre a agressão e a defesa oferecida? Não
Perceba que a esposa era notoriamente mais fraca, fisicamente, do que o marido, suas agressões não ofereciam nenhum risco a vida do marido, quiçá a integridade física dele. Não existi nenhuma proporcionalidade onde um homem forte e saudável se defende de uma agressão a tapas de uma mulher com dois tiros. Logo, aqui não há que se falar em legitima defesa.
Em síntese para que haja e legitima defesa, são necessários a) que a agressão seja injusta; b) que haja atualidade ou iminência; e c) que seja proporcional.
No caso do policial amotinado que disparou contra o Senador não concorre nenhum dos pressupostos da Legitima Defesa, primeiro porque a agressão não era injusta, uma vez que como demonstrado acima a Greve ou Motim dos Policiais é crime. Lembra do exemplo do homem que resolve por abaixo a boca de fumo, no caso dos policiais o crime é mais grave ainda, se nos utilizarmos da Pena em abstrato cominada aos dois crimes como critério de politica criminal para mensurar gravidade.
Não havia mais atualidade ou iminência na agressão, pois ao analisar o vídeo é possível perceber que Cid Gomes breca a maquina tão logo o portão é derrubado. E por fim não há proporcionalidade em efetuar dois disparos de arma de fogo contra alguém para proteger um portão de quartel ou uma greve que sequer deveria existir.
Resta dizer, também, que sob nenhuma ótica a atitude do policial poderia ser amparada por uma legitima defesa putativa fática, esta que se configura quando o agente deduz, influenciado por um erro invencível, uma situação que se existisse de fato o colocaria em situação de legitima defesa. Ora, é sabido por todos que policiais militares ingressam na carreira por meio de concurso público, além disso, é pré-requisito para o exercício da profissão que ele tenha um razoável conhecimento sobre Direito Penal. O que implica em dizer que ele sabia que não estava em legitima defesa, sua compreensão fática não estava turvada e que atirou com a intenção de matar.
Por fim esperamos que tenha ficado claro, que independentemente de convicções politicas essa greve não pode ser apoiada, a atitude do policial que atirou, e pra matar, reforce-se, não pode ser enxergada como um ato justificável diante da situação. A polícia representa o braço armado do Estado, o poder subjetivo que é concentrado em suas mãos não deve ser usado em desfavor daqueles que ela deveria proteger. Esperamos que a situação se resolva logo, que todos os culpados recebam as punições cabíveis e que o Senador se recupere sem sequelas.
Dr. Kaíque Carlos de Oliveira. OAB/GO 58.157. Advogado e Professor, membro da Comissão de Direito Penal e Direito Bancário da OAB/GO. Pós-Graduando em Ciências Criminais.